Introdução
Quando pensamos em inteligência, dificilmente cogitamos que ela possa habitar o reino dos fungos. No entanto, estudos recentes têm revelado que organismos como os mycelia — as redes subterrâneas dos fungos — operam com uma complexidade e sensibilidade impressionantes, desafiando a noção tradicional de cognição como algo exclusivo dos animais com sistema nervoso central (Adamatzky, 2018; Sheldrake, 2020; Boddy et al., 2021). Essas redes demonstram capacidade de tomada de decisão, resolução de problemas espaciais e adaptação ambiental, sugerindo uma forma de “inteligência fúngica” distribuída e altamente responsiva ao meio. Ao observarmos esses seres, somos levados a refletir sobre uma criação que é ao mesmo tempo funcional, estética e misteriosamente interligada.
Como escreveu Merlin Sheldrake (2020), “os fungos não apenas sustentam a vida — eles a modelam”. De fato, compreender a vida micelial é uma forma de contemplar a sabedoria por trás dos processos naturais e repensar a maneira como nos relacionamos com o ambiente e com o próprio conhecimento.
A rede invisível que sustenta a vida
Debaixo de nossos pés, estende-se uma vasta rede de filamentos fúngicos — os micélios — que conecta árvores, raízes e microrganismos em uma intricada malha de cooperação subterrânea. Popularmente conhecida como “internet da floresta”, essa rede atua não só na decomposição da matéria orgânica e no transporte de nutrientes, mas também como mediadora de comunicação entre plantas, fenômeno amplamente demonstrado por Suzanne Simard (Simard et al., 1997) e difundido ao grande público por Peter Wohlleben em A Vida Secreta das Árvores (Wohlleben, 2015).
Longe de serem apenas recicladores do ecossistema, os fungos miceliais regulam fluxos vitais, modulam interações entre espécies e demonstram comportamentos que lembram tomada de decisão: escolhem onde expandir suas redes, com quais organismos interagir e quando cessar conexões. Trata-se de uma forma de inteligência não consciente, mas funcional — uma lógica sistêmica que revela a ordem, a intencionalidade e a beleza que permeiam a criação.
Fungos, cognição e a humildade epistêmica
Dizer que os fungos “pensam” pode soar herético à biologia clássica. Porém, autores como Sheldrake (2020) e Stamets (2005) têm defendido uma ampliação do conceito de cognição para incluir formas de inteligência distribuída, descentralizada e sensível ao ambiente. Essa perspectiva nos convida a um tipo de humildade epistêmica: o reconhecimento de que o que chamamos de “inteligência” pode assumir formas radicalmente diferentes da nossa, e ainda assim ser eficaz.
Na tradição cristã, a sabedoria divina se manifesta não apenas nos seres racionais, mas em toda a ordem natural. O Livro da Sabedoria já indicava que “a sabedoria de Deus governa todas as coisas com suavidade e vigor” (Sb 8,1). Assim, ao estudarmos os fungos, também podemos contemplar traços dessa sabedoria operando em organismos muitas vezes desprezados ou invisíveis aos olhos humanos.
Micologia e espiritualidade: um convite à contemplação
A vida dos fungos também nos ensina sobre paciência, adaptação e colaboração. O crescimento micelial ocorre no escuro, em silêncio, de forma gradual e estratégica — características que ecoam os ritmos espirituais da oração, da gestação interior e da escuta profunda. Assim como o micélio conecta árvores e compartilha recursos, nós, seres humanos, somos chamados a criar redes de solidariedade, escuta e partilha. Em tempos de isolamento e fragmentação, a micologia pode inspirar uma espiritualidade mais integrada com a Terra, com os outros e com Deus.
Conclusão: sabedoria que brota do solo
A inteligência dos fungos não se mede em QI, mas em conexão. Eles decidem sem ter um cérebro, comunicam sem palavras, colaboram sem contratos. E isso não é apenas biologia — é também teologia. A criação nos ensina continuamente, e os fungos são um lembrete vivo de que a sabedoria de Deus se manifesta nos pequenos, nos ocultos e nos humildes.
Neste sentido, estudar fungos não é apenas uma jornada científica. É um caminho contemplativo, que nos chama a perceber, com reverência, que há uma inteligência operando sob nossos pés — e que tudo, do húmus ao homem, faz parte de uma criação sábia, interdependente e sagrada.
Referências
- Adamatzky, A. (2018). Advances in Physarum Machines: Sensing and Computing with Slime Mould. Springer.
- Bíblia Sagrada. Livro da Sabedoria, capítulo 8, versículo 1.
- Boddy, L., Büntgen, U., Egli, S., Gange, A. C., Heegaard, E., Kirk, P. M., … & Kauserud, H. (2021). Climate variation effects on fungal fruiting. Fungal Ecology, 50, 101023.
- Sheldrake, M. (2020). Entangled Life: How Fungi Make Our Worlds, Change Our Minds & Shape Our Futures. Random House.
- Simard, S., Perry, D. A., Jones, M. D., Myrold, D. D., Durall, D. M., & Molina, R. (1997). Net transfer of carbon between ectomycorrhizal tree species in the field. Nature, 388(6642), 579-582.
- Stamets, P. (2005). Mycelium Running: How Mushrooms Can Help Save the World. Ten Speed Press.
- WOHLLEBEN, Peter. A vida secreta das árvores: o que elas sentem e como se comunicam: descobertas de um mundo secreto. Tradução de Lúcia Barros. 1. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2015.